sábado, fevereiro 15, 2014

A adicção não é um vírus


A recuperação da adicção é um processo para o resto da vida.
Após as noticias recentes sobre o falecimento do actor de Hollywood,  Philipe Seymour Hoffman vítima de overdose de drogas ilícitas, intoxicação que ocorre quando  o individuo consome uma determinada quantidade de droga que os sistemas vitais do organismo são impedidos de funcionar adequadamente,   veio levantar a questão sobre a importância da abstinência, da recuperação da adicção e da recaída. 
Philipe Seymour Hoffman permaneceu abstinente durante 23 anos consecutivos. Se o actor faleceu aos 47 anos, fazendo as contas, parece ter iniciado a recuperação com 24 anos. Iniciar a recuperação com esta idade, por si só é um feito extraordinário, mas por outro lado, revela, desde cedo e ao longo do seu desenvolvimento, um individuo vulnerável (predisposição) aos efeitos e consequências da dependência de substâncias psicoactivas, do Sistema Nervoso Central, após duas décadas abstinente, paradoxalmente, recaiu e acabou por morrer de overdose. Não faleceu de cancro ou de doença cardíaca, mas vítima da adicção.

Já em meados de 2013, segundos os media norte americanos, Philipe S. Hoffman deu entrada num centro de tratamento para uma desintoxicação, durante dez dias, depois de ter recaído em heroína. Após ter completado o programa de desintoxicação, aparentemente parece ter voltado a frequentar as reuniões de Alcoólicos Anónimos (AA), note-se, já o fazia desde os 24 anos de idade, até 2014. Uma semana antes de morrer, foi à sua última reunião.

Este incidente, adquiriu um destaque mediático visto Philipe S. Hoffman, ser um actor galardoado com vários prémios, todavia, gostaria de transpor este caso para o cenário da dependência de drogas, da recuperação e da recaída em Portugal. Existem historias semelhantes de indivíduos adictos, em Portugal, que também permanecem períodos consideráveis abstinentes, em recuperação, mas que acabam, por um conjunto de motivos, reiniciar os consumos de substâncias psicoactivas, incluindo o álcool.
Como profissionais, quando nos deparamos com um individuo adicto a substâncias psicoactivas, vulgo drogas, devemos considerar a abstinência uma meta prioritária? A minha resposta é sim. Um individuo com um historial significativo de dependência (adicção) precisa de ajuda e recursos, a fim de repensar, sobre o seu estilo de vida e as drogas.

De acordo com a minha experiencia profissional, visto ainda não existirem estudos em Portugal sobre o tratamento, a recaída e a recuperação da adicção às drogas, o primeiro ano de abstinência é um período crucial, mas ao mesmo tempo critico para o individuo. A adicção às drogas lícitas, incluindo o álcool, e as ilícitas, interferem e comprometem o funcionamento e o desenvolvimento normal do cérebro – estruturas associadas ao prazer e recompensa, assim como a motivação, a memória e a capacidade de tomar decisões. A adicção, conforme vai evoluindo, gradualmente vai incapacitando o individuo de sentir, pensar (défices cognitivos) e tomar decisões saudáveis, ao mesmo tempo, vai deteriorando os vínculos entre as pessoas significativas; perda do controlo, síndrome da abstinência, problemas familiares e profissionais, tolerância às drogas, impotência associado ao sentimento de culpa e a vergonha, a negação e o estigma. Na perspectiva de um individuo adicto, a abstinência total de drogas é interpretada como uma privação radical, com custos psicológicos e sociais consideráveis, porque as substâncias psicoactivas, apesar das consequências negativas funcionam como uma almofada, um amortecedor, um «remédio» e representava um estilo de vida.

Generalizando, o consumo do álcool é encorajado na nossa cultura, somos seres sociais que utilizamos as bebidas alcoólicas com o intuito de «olear» a comunicação. Como profissionais, este tipo de paradigma poderá influenciar a nossa abordagem. Um individuo adicto fica incapaz de adoptar comportamentos saudáveis se consumir drogas, incluindo o álcool. Com muita frequência, escuto este tipo de comentários, entre indivíduos adictos em tratamento das drogas: «Abstinência total? O quê? Nunca mais vou usar drogas? Beber álcool? No verão… ao jantar entre amigos e beber um copo… fumar um charro de vez em quando?»  
Um individuo adicto, mesmo em recuperação por longos períodos, não consegue erradicar das suas memórias as sensações e experiências intensas de bem-estar e alivio que as drogas proporcionaram. Este estilo de vida, centrado nos efeitos das drogas, funcionava como um excelente antidoto de forma a gerir sentimentos desconfortáveis associados ao stress/tensão, ao tédio, à frustração originando uma sensação de despropósito em relação ao rumo da sua vida. A dependência psicológica das substâncias, não desaparece só porque o corpo está livre de drogas – lógica adictiva, exacerbado pelas características da personalidade. Costumo afirmar que viver dependente de drogas é uma ocupação, idêntica ao um emprego, que consome imenso tempo e energia, 24/24 horas, 7 dias por semana e 365 dias por ano. É o assunto mais importante e central na vida do individuo, mais importante até que a própria família, incluindo as crianças, a saúde, a carreira profissional, etc, etc.
Quais são os motivos que levam um individuo abstinente e em recuperação, durante 23 anos, a reiniciar o consumo? Após vários períodos duradouros em recuperação, alguns indivíduos decidem violar o voto da abstinência. Eis relatos que ouço, nas consultas:
  • “A minha vida está porreira, por isso, comecei a beber bebidas alcoólicas às refeições ou quando saio com amigos à noite. Nada de anormal.”
  • “Comecei a beber álcool, socialmente e tudo corria bem durante alguns anos, até ao dia que voltei a consumir a minha droga de escolha, (nestes casos pode ser heroína ou cocaína) e rapidamente a compulsão tomou conta de mim. Ao fim de umas semanas já estava outra vez agarrado às drogas.»
  • “Estive abstinente, durante 18 anos, a minha vida estava óptima, mas um dia, a relação com o meu marido acabou e decidi divorciar-me. Senti-me desesperada e sozinha com dois filhos nos braços. Perdi o sentido da minha vida, despertei para uma realidade que não estava preparada e a única solução foi reiniciar o consumo de drogas. Apesar de estar abstinente tanto tempo, soube onde me dirigir para comprar drogas, como consumir e decidi ocultar esta situação da minha família e no trabalho. Mais tarde, quando descobriram que andava a consumir drogas e alcool, foi uma tragédia…foi uma grande desilusão tão grande que nem consigo descrever.”
  • “Estive abstinente de drogas, durante 14 anos, adorava o meu trabalho, tinha uma excelente carreira profissional, um bom ordenado e era feliz. Um dia, de repente, fui despedido e fiquei no desemprego. Perdi qualidade de vida e senti-me injustiçado. Andei uma semana, cheio de pena de mim próprio, fiquei deprimido, não conseguia suportar a minha cabeça e estar com a família e amigos. Dormia até há hora do almoço e gerou-se, dentro de mim, uma sensação de inutilidade e impotência insuportável. Um dia, não sei explicar como, decidi começar a beber bebidas alcoólicas, e uns meses depois reiniciei o consumo nas drogas.”
  • “Estive abstinente de drogas, incluindo o álcool, durante 20 anos, criei uma empresa e um projecto de vida. Era um sonho tornado realidade, depois do inferno que passei com a adicção às drogas. Decidi reconstruir a minha dignidade e a auto estima. As pessoas de família começaram a acreditar em mim, inclusive o meu pai, ajudou-me financeiramente para avançar com o meu projecto profissional. Depois de iniciar a empresa, não pensava noutra coisa, que consistia em obter reconhecimento e a concretização de um sonho de infância. Passados 18 anos, trabalhava 12 a 14 horas, não dormia, andava ansioso e sempre em stress, só pensava em ganhar dinheiro. Sabia que para ter sucesso precisava de produzir, ganhar mais dinheiro, manter o estatuto e dar o meu melhor. Vivia única e exclusivamente para o trabalho. Um dia, fui parar, às urgências do hospital, deprimido e com ataques de pânico. Este episódio, veio alertar-me para a minha incapacidade, de gerir o negocio e ganhar mais dinheiro, sabia como atenuar a angustia, a depressão e a ansiedade. Reiniciei o consumo de bebidas alcoólicas, e passados 2 anos o consumo de cocaína, socialmente com amigos para me divertir e descomprimir, mais tarde, a heroína e os ansiolíticos.”

Para terminar, os indivíduos com um historial significativo de dependência (adicção) de substâncias psicoactivas, do Sistema Nervoso Central, lícitas incluindo o álcool e medicação prescrita pelo médico (do grupo das benzodiazepinas – por exemplo, os ansiolíticos) e as ilícitas devem considerar a abstinência uma regra. Tal como referi, estes indivíduos adictos desenvolveram uma predisposição, uma vulnerabilidade física e psicológica, ao contacto com drogas, que os colocam em risco de reiniciarem a adicção activa, que pode ser despoletada a qualquer altura, evento adverso e dor intensa, doença, etc, independentemente das suas vontades. Isto é, enquanto permanecerem abstinentes, a adicção permanece controlada; refiro-me á compulsão e à obsessão associado às drogas - ao prazer. De notar que, quando afirmo abstinência, refiro-me à «auto medicação», porque existem excepções, indivíduos adictos, em recuperação, precisam de medicação, e acima de tudo, acompanhamento profissional digno. Ao contrário, daquilo que algumas tendências e tradições disfuncionais da nossa cultura teimam em reforçar, é possível ter uma vida plena abstinente, sem drogas lícitas, incluindo o álcool, e as drogas ilícitas.

São necessários estudos inovadores, não me refiro somente às causas, aos sintomas da dependência das drogas, incluindo o álcool, mas aquelas pessoas, adictos e adictas, que após um historial de adicção activa, permanecem longos períodos em recuperação. Paralelamente, precisamos de contrariar o estigma, a negação e a vergonha. Ainda ouço, com frequência pessoas, e alguns profissionais, a afirmarem que os indivíduos em recuperação duradoura, são «ex drogados» ou «ex toxicodependentes». Quando não compreendemos determinados atitudes e comportamentos dos outros, a nossa tendência é para criticar, e em casos de ignorância, dizer mal. É necessário retirar os rótulos, desmistificar e corrigir certos paradigmas disfuncionais e profissionais desactualizados, revelarmos mais humildade e reconhecimento alheio, pensarmos «fora da caixa», a fim de compreendermos melhor quais são as competências e os recursos, que dotam estas pessoas fantásticas e resilientes perante o apelo (perpétuo) dos efeitos das drogas lícitas e/ou ilícitas. Eles e elas não estão imunes ou curados, porque a adicção não é um vírus, pelo contrário, investem na prevenção da recaída e consideram que a recuperação acrescenta significado e propósito ao rumo das suas vidas. Para todo o efeito, também são uma referência para a família, para comunidade e a sociedade, incluindo profissionais. Eles andam aí à espera que de serem chamados a participar no tratamento, na recuperação e na prevenção da recaída. Recuperar é que está a dar contra o estigma, a negação e a vergonha.


Philipe S. Hoffman, R.I.P. e as minhas condolências para a família.