quarta-feira, dezembro 23, 2009

A Mentira nos Toxicodependentes




Segundo Gagnepain, (1990) nas antípodas das patologias da inibição e do excesso de controlo, como as neuroses, encontra-se a toxicodependência, como uma patologia do agir e do excesso.
Cada toxicodependente tem uma experiência singular que pode, ser percebida através da escuta do paciente; e sobretudo do que ele provoca em nós, do que ele nos faz sentir e questionar. (Coimbra de Matos, 2002)
Já Chasseguet-Smirgel (2001) aponta um aspecto comum e determinante da personalidade dos toxicodependentes: estruturas muito dependentes.

Em 1971 Fenichel salienta que nos toxicodependentes as qualidades das primeiras relações de objecto são decisivas. A haver uma mãe mais ou menos adequada, dentro duma fase normal, todo o desenvolvimento se processa normalmente para ambos. No entanto se esta fase tem uma duração superior à necessária e se o desejo da mãe de continuar esta fusão persiste, assistimos a uma interacção persecutória e patogénica para o bebé. Nesta relação de dependência total, o bebé tende a submeter-se às expectativas que a mãe projecta sobre ele.
Ao mesmo tempo inicia-se o desenvolvimento na estrutura psíquica, da identidade sexual da criança. Assim sendo, cada um é objecto de gratificação do outro. Não obstante, a mobilidade do bebé, a sua inteligência, os seus impulsos afectivos, a par com a erogeneidade corporal, só podem desenvolver-se na medida em que a mãe investe positivamente todos estes aspectos. Mas ela, a mãe, também pode inibir este investimento narcísico tão essencial a estes elementos vitais para a estrutura somatopsíquica precoce do bebé, sobretudo se ele tem que cobrir as faltas do mundo interno da mãe. Tendo em conta as angústias, os medos e os desejos da mãe e uma vez projectados no bebé, ela corre o risco de provocar o que se pode conceptualizar como uma relação aditiva à sua presença. Ou seja podemos dizer que a mãe é que está e mantém dependente a criança. Daqui decorre o perigo potencial de a criança não chegar a construir o seu mundo interno, a representação de um bom objecto, ou mais tarde de um bom objecto paterno, capazes de conter e modificar os estados de sobreexcitação e de sofrimento psíquico. Faltar-lhe-á então a capacidade para se identificar com essa representação interna e por isso incapaz de aliviar por si mesmo os seus estados de tensão psíquica. (Fenichel, 1971).

Uma vez que a independência, não é conseguida, estes indivíduos adquirem-na através de objectos mágicos, tais como a droga.
Através desta estratégia, a dependência numa mãe real é negada, enquanto suporte. Como não foi encontrado um objecto suficientemente contentor através de objectos externos, capaz de desintoxicar as ansiedades e angústias do bebé, afim de serem devolvidas plenas de significado, estes indivíduos voltam-se para o mundo externo e tentam encontrar essa contenção através de objectos internos, mesmo que imperfeitos. A negação da necessidade de uma mãe real, envolve uma trapaça, uma mentira psíquica onde uma gratificação alucinatória é valorizada acima da mãe real. Assim, do self aprisionado, emerge um self confiante que é sentido como sendo digno de confiança e que se torna o baluarte contra a dependência das pessoas que se tornaram imprevisíveis e ameaçadoras.
Rosenfeld (1971) defende que o mentiroso é o self idealizado e destrutivo que domina a personalidade.


Do ponto de vista de Chasseguet-Smirgel (2001) o uso de mecanismos omnipotentes, como um meio para encontrar uma independência ilusória e contentora, parece determinante. Enquanto uma estóica independência dos outros é mantida, valendo-se de um objecto mágico, a droga, verdadeiro talismã para os drogados, inconscientemente a verdade, se bem que contida, é no entanto negada.
Daqui observa-se um estado de dependência desta, droga, que se tornou um objecto de tal maneira escraviza dor e cruel que mantém os toxicodependentes reféns.

Sequeira (2006) dá-nos conta da retenção que o indivíduo faz da experiência do consumo da substância e do modo como essa experiência se insere na sua vida. Assim,
o que determina o consumo repetitivo, é a memória desse momento em detrimento dos efeitos do psicotrópico. É o resultado previsível de um comportamento sequencial vivido repetidas vezes.
Poderemos dizer que a droga é um presente envenenado por si só; não pela toxicidade das substâncias psicotrópicas, mas porque o objectivo primordial falhou; a tão almejada independência.

A simbiose com este objecto interno poderoso, defende contra a ansiedade de abandono e mais tarde contra a ansiedade de castração. A ansiedade acerca da perca da omnipotência, subjectivamente experimentada como abandono e morte precisa da fusão do self com o objecto. O ego, ou o self na terminologia da Klein, e o ego ideal, ou self idealizado conforme a Klein o designa, funde-se para se tornar indistinguível. Uma forma de pensarmos acerca desta fusão organizada pelo narcisismo, será imaginar um sistema através do qual partes primitivas do objecto idealizado, fazem um pacto inconsciente com as partes do self infantil e omnipotente. Tal aliança torna o par invencível, capaz de desafiar as leis da natureza. Uma vez que a falha foi ultrapassada, sem no entanto resolvida, isto será equivalente ao paraíso na terra, só conseguida pelos próprios deuses e loucos. Do infindável sustento materno, um sentimento de felicidade eterna, emerge. (Chasseguet-Smirgel, 2001).

Um alto preço psíquico tem que ser pago por tanta ilusão omnipotente.
A idealização de um objecto materno protector faz parte do processo de desenvolvimento normal da criança. A privação, o trauma, ou a sobre estimulação por uma figura parental pode sequestrar todo este processo.
A mentira acerca da bondade e da força do objecto é explorada com um propósito: fundir-se com as qualidades desse objecto. Esta mentira requer mais mentiras para manter a premissa inicial. Daqui decorre um complicado sistema baseado em falsas premissas que se torna incrivelmente grandioso e patológico. O perigo deste tipo de idealização é que toma a forma de um emparelhamento com um objecto com a promessa que ajuda a sustentar uma crença ilusória para além do que é útil ou até necessário.

Quanto mais se manifesta a faceta omnipotente ilusória deste par, mais se salienta o self destrutivo e tem lugar a destruição de outros aspectos: uma clara convicção de continuidade eterna e da imortalidade. (Chasseguet-Smirgel, 2001).

Parece-nos que este seria sem dúvida um outro tema interessante a desenvolver: A mentira como expressão da pulsão de morte. Fusionar-se duma vez por todas na morte, para que acabem todas as separações, e (re) nascer uno e transformado noutro.

Margarida Duque
Psicóloga Clínica
914177745
Comentário: Os meus agradecimentos à Dra Margarida Duque pela sua colaboração na missão/causa Recuperar É Que Está a Dar.
Este texto que amavelmente foi cedido e partilhado, apesar de ser técnico consiste numa exposição lógica e reflexiva. Exprime a dedicação e um conhecimento a um assunto complexo e actual. O tratamento (mudança) representa, tanto para o doente como para o profissional, um desafio gigantesco. Os milagres acontecem quando existem as condições necessárias para a recuperação (um novo modo de vida).

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