segunda-feira, maio 18, 2015
«Uma vez não chega e mil não são suficientes»
Olá sou o Raul (nome fictício). Reconheci que tenho um
problema com o sexo quando senti que não conseguia parar. Coloquei o meu
emprego em risco ao desaparecer do trabalho para ir à prostituição ou engate e
de estar dias inteiros no trabalho a obcecar com quem seria o próximo parceiro,
através dos encontros prévios que tinha tido em chats, para fazer sexo. Não
haver limite nas relações que desenvolvia com colegas de trabalho que podiam
levar ao despedimento. Era viciado no flirt,
nos orgasmos sucessivos, na adrenalina de fazer sexo em locais públicos e em
forçar a minha mulher a fazer sexo comigo. Parecia que tinha mais prazer quando
ela não queria. De ter relações sexuais (para não falar nas milhares de vezes
que pratiquei sexo oral) sem preservativo. Actualmente tenho a certeza que o
meu vício me colocou na prateleira na empresa em que trabalho e impediu de
constituir uma família. Entretanto tenho três filhos fruto de uma relação de
codependência com uma mulher. O meu futuro não sei qual vai ser, só sei que não
quero voltar para o inferno em que vivia.
Tenho um problema em criar intimidade nas minhas relações.
Teve a ver com a ausência de afecto na infância que me levou a buscar sexo para
me alienar da minha infelicidade e a usar pessoas na cama como uma droga. E tal
como dizem nas reuniões de Narcóticos Anónimos"1 UMA VEZ NÃO CHEGA E MIL
NÃO SÃO SUFICIENTES ". Sou bissexual, todas as semanas dizia para mim
mesmo que ia parar de agir nos comportamentos compulsivos, mas acabava por ter
inúmeros parceiros sexuais. Apanhei algumas doenças venéreas, de fácil
tratamento, mas foi mera sorte não ter apanhado VIH, SIDA ou Hepatite C.
A pornografia é também um vício que serve de
"trampolim" para a compulsão. Através da pornografia é possível uma
ligação a um mundo virtual, sem medo de doenças, fantasiando com todos os
corpos que a minha cabeça pede. Ao longo dos anos tirou-me a capacidade de
desfrutar dos engates, passei a comparar os corpos dos actores no ecrã/monitor
com os que encontrava na vida real. Desenvolvi um mecanismo, idêntico ao
caçador durante a caça, onde busco uma “presa” entre as pessoas que se cruzam
na rua comigo para um possível engate. Essa caça, mais do que o sexo em si,
constituía um factor principal do vício.
Quando cheguei ao programa do Adictos ao Amor e Sexo Anónimos (AASA)2 achava que era somente
viciado em sexo, mas descobri que muitas das relações heterossexuais mais estáveis
que tinha tido eram típicas de um viciado em amor. Começo por fantasiar,
achando que essa pessoa me vai curar, para depois, rapidamente a perseguir
pelos defeitos que encontro nela. Ao longo destes cinco anos que estou em AASA
apercebo-me que tenho medo de desenvolver relacionamentos de intimidade por
falta de auto estima . As pessoas, com
as quais mantenho uma relação, coloco-as num pedestal ou são lixo. Quando os
meus relacionamentos hetero fraquejam rapidamente recorro as fugas sexuais para
apagar a dor. Foi falando com os meus companheiros de luta nas reuniões de 12
passos que fui entrando no espirito da «HONESTIDADE, BOA VONTADE E MENTE ABERTA»
meditando sobre situações da minha vida que me causavam dor. Muitas situações
ficaram aliviadas, pois dei-me conta que não estava a ter honestidade, nem boa
vontade , nem mente aberta. Detestei o meu “padrinho” quando me dizia isso, mas
pouco a pouco fui-me libertando das camadas de desonestidade. É como descascar
uma cebola (com muitas camadas).
A linha de conduta entre todos esses padrões de uso/comportamento
foi de ter uma infância de abusos sexuais
e emocionais que deixaram um buraco dentro de mim . Se não tratarmos de preencher
espiritualmente esse buraco então vamos usar os nossos padrões de uso com base
no prazer imediato. Foi nas reuniões que
aprendi a dar uma abraço, não sexual, com outro ser humano, onde aprendi a dar
uma gargalhada e a sentir-me parte de um
grupo. Isso para mim foi fundamental.
Actualmente estou há três anos limpo e sóbrio de engates. É
um milagre. A alegria de poder falar da vergonha e dos segredos fez com
conseguisse quebrar o ciclo compulsivo. Os primeiros 90 dias de “limpeza”, são
muito importantes pois só passado esse tempo, sinto que o meu cérebro se
descondiciona de ir buscar esse tipo de prazer imediato. Por exemplo, ir a
determinados locais públicos, onde sei que há homens a ter sexo. Também foi
muito importante ter visto nas salas pessoas com diferentes padrões do meu e
ver como sofrem. Homens que gastaram tudo o que tinham com a prostituição.
Casos de companheiros mais novos com padrões muito fortes de adicção à
pornografia, ao ponto de terem quase trinta anos e só terem tido sexo com um
computador. Outros casos, onde a pessoa não é capaz de estar fisicamente com
ninguém, masturbando-se compulsivamente recorrendo à pornografia sendo o
ecrã/monitor o seu parceiro sexual. Casos de mulheres que se envolvem em
relacionamentos com homens, mais jovens, que mesmo sem haver sexo lhes davam
dinheiro. Escutar tudo isso me ajudou a relativizar os meus padrões e a
perceber que eu não sou o centro do mundo. Não é assim tão importante, se sou
homo ou hétero ou se tenho vinte ou setenta anos. A adicção é como um buraco
negro que se tem no coração e que se quer tapar com amor, sexo, álcool, drogas,
jogo, trabalho, comida. Enfim, tudo o que dá prazer imediato. Ao quebrar a
vergonha comecei a libertar-me.
Foi fundamental usar as ferramentas do programa. Fazer só
reuniões não basta, é preciso parar um pouco para meditar a fim de conseguir
reconciliar com o turbilhão de emoções. Fazer serviço nas reuniões (abrindo a sala,
fazendo o chá, telefonar aos recém chegados), ter um “padrinho” (companheiro
com mais experiência de recuperação). Todas essas peças juntas fizeram com que
a sobriedade fosse restaurada.
A mudança principal, que os 12 passos de AASA trouxe para a minha vida, foi ajudar-me a
tornar-me um protagonista no rumo da minha vida. Consegui isso repetindo muitas
vezes a oração da serenidade que é dita no final de cada reunião:
«Concedei –me Senhor, a serenidade para aceitar o que não
posso modificar , a coragem para modificar o que eu posso e sabedoria para distinguir
uma coisas das outras.»
Em vez de estar constantemente a desculpar-me, a fim de agir
nos comportamentos compulsivos devido às coisas e às pessoas que me rodeavam e
a não agirem como quero, através desta oração habituei-me a pedir Serenidade. No
princípio era tudo muito confuso pois estava a ressacar de não ter sexo, tudo e
todos os que me rodeavam me pareciam insuportáveis. Só queria mais uma “dose”. Seguidamente
foi me concedida coragem para modificar o que eu posso: assistir a reuniões,
telefonar a um companheiro, levantar a horas e fazer o meu trabalho com diligência,
fazer ginástica, alimentação saudável, fazer amizades sem serem baseadas em
sexo e flirt, aprender a dar o nível
certo de intimidade a cada pessoa que passa na minha vida. Tento dizer todos os
dias de manhã esta oração e pedir ao Deus, da minha concepção, que me dê mais
um dia de sobriedade. Todavia, muitos dias não o faço, mas devia.
«Juntos conseguimos aquilo que sozinhos não somos capazes»
Abraço e +24
Raul
Referencias:
1.Narcóticos Anónimos - Grupos de ajuda mutua que utilizam o método dos 12 Passos na recuperação da adicção. Saiba mais http://www.na-pt.org/
2 Adictos ao Amor e Sexo Anónimos – Grupos de ajuda mutua que
utilizam o método dos 12 Passos na recuperação da adicção. Saiba mais http://aasalisboa.blogspot.pt/
Comentário: Os
meus agradecimentos ao Raul pela sua participação no blogue Recuperar É Que Está A Dar através da sua
partilha honesta e corajosa.
À volta do tema do sexo existe uma controvérsia, que dificulta
o diagnóstico e o tratamento, que gira em torno da moralidade, do tabu e do
prazer. Por outro lado, o sexo é uma fonte natural de prazer, tal como comer, nesse
sentido, quando falamos de adicção ao sexo o assunto torna-se mais complexo. Segundo
alguns especialistas, consideram que a adicção ao sexo não é um problema moral,
é uma doença , mas que é possível ser tratada. Ao contrario da dependência com
substâncias psicoactivas lícitas e/ou ilícitas, vulgo drogas, a adicção ao sexo
manifesta-se através do comportamento, eventos e processos, que culminam em
práticas intensas e alteradoras do humor que se tornam o centro (foco) da vida
do individuo. Progressivamente, o individuo vai perdendo a capacidade de auto
critica e distorce a realidade através de fantasias poderosas reforçadas por
segredos e vidas duplas repletas de vergonha.
Segundo o Dr. Patrick Carnes,
refere o “Círculo da Adicção” através de quatro fases: a 1.Preocupação – progressivamente a mente do adicto fica focada em
fantasias sobre o sexo. É uma fonte intensa de pensamentos obsessivos que serve
o estímulo sexual. 2.Ritualização –
o individuo desenvolve rotinas e hábitos que intensificam a preocupação e
aumentam a excitação sexual. 3.Comportamento
sexual compulsivo – é o acto sexual em que o individuo é incapaz de
controlar o seu comportamento. Representa o final das fases da Preocupação e da
Ritualização. 4.Desespero e angústia-
É o confronto com a perda do controlo e o fim das fantasias intensas
alteradoras do humor. Sentimento de desespero. Quando atingem esta fase muitos
adictos fazem promessas a si próprios, que nunca mais retomam o comportamento
problema, na maioria dos casos sem sucesso, visto passados uns dias ou horas,
reiniciarem novamente o circulo através da Preocupação.
Considero os grupos de ajuda mutua, dos 12 Passos, um
recurso extremamente valioso na sociedade por vários motivos. Primeiro, porque funcionam, através
dos vínculos de confiança as pessoas conseguem recuperar a dignidade e a estima
necessária à motivação para a mudança. Segundo, é gratuito. Não existem
profissionais e/ou compromissos financeiros e qualquer pessoa pode aderir,
independentemente do estatuto social. Terceiro, a história sobre este tipo de
grupos de ajuda mutua, desde 1935 nos EUA, e actualmente em todo o mundo,
revela que as pessoas conseguem mudar de comportamento quando assumem a
responsabilidade pelo seu comportamento problema e dedicam-se com paixão a
entreajudar-se ao invés de serem tratadas como vítimas do estigma e da negação.
Algumas pessoas que acompanho nas consultas também pertencem aos grupos dos 12
Passos. Devido à complexidade do tratamento da adicção, todos os recursos
disponíveis na sociedade são bem vindos, desde que funcionem. É possível
recuperar, um dia de cada vez.
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