sexta-feira, outubro 24, 2014

O poder da palavra.



"Bom dia Caro João Alexandre!
 Regra do silêncio.
Chamo-me Maria José, tenho 40 anos, sou alcoólica (adicta) e estou em recuperação há 13 meses após internamento de 5 semanas e frequento as salas de Alcoólicos Anónimos (1) (AA).

A regra do silêncio reinou entre o meu ex. marido e eu durante todos os anos do meu consumo - quase 20 - e estendeu-se ao início da minha recuperação.

Foi sempre um acordo mútuo entre os dois. Eu acreditava que era uma componente do amor e um factor de protecção. Portanto, acreditava que era algo de positivo entre nós. Sentia muita gratidão pelo meu marido manter este segredo.

Conseguíamos, mais ou menos, esconder os meus consumos. Nos últimos anos, passei a beber de forma solitária, nunca ficava bêbeda, era discreta nas compras. O meu marido jurava que ninguém sabia, a preocupação era a família dele que desde a nossa falência nos ajudava financeiramente, assim como também se ocupava da nossa filha, de tenra idade, nenhum de nós trabalhava.

Oficialmente, eu estava doente e dependente das benzodiazepinas (2), que também era verdade. Por dia, tomava duas boas dezenas de comprimidos juntamente com o álcool. Não para me "drogar" ou me sentir "bem", nunca senti esse efeito. Fazia-o para me acalmar, buscava o efeito terapêutico, que não sentia, tal era a tolerância que já lhes tinha ganho. Na realidade, não podia passar sem elas.


Ainda em negação quanto ao alcoolismo, lá acabei por aceitar o internamento, achando que o meu problema era a adição às benzos.A fase da desintoxicação foi muito muito dolorosa.
Durante o trabalho terapêutico deparei-me com este problema do segredo e do silêncio. Na minha vida, tudo era segredo. Achava que estava a fazer bem, que era uma pessoa reservada, protegia a minha intimidade e que o meu marido era o meu bom Protector. Todavia, comecei muito para o fim do internamento, que foi prolongado mais uma semana, a perceber o quanto ele me ajudava a consumir. Nunca senti o amor-firme.

Pondo em causa o tratamento, recusei que a minha filha de 5 anos participasse na conferência de família. Felizmente, a minha terapeuta, certamente acreditou em mim e permitiu a continuidade do internamento. Nunca admiti que a minha filha soubesse que eu bebia. Era muito cuidadosa, nunca bebi diante dela. Mas todos me diziam que sim; ela sabia. Isso enfurecia-me. 

Lembro-me, num domingo à tarde, durante a visita dela e do meu marido, tê-la ao meu colo e sentir livrar-me daquele sufoco, fiz sinal, ao meu marido, que ia contar à pequena, mas imediatamente, disse "livra-te!" Não o fiz e perdi ali uma oportunidade. Só meses mais tarde viria a conversar com ela, ao nível dela e afinal sabia de tudo. Ela também mantinha esse segredo com o pai.

Os meus trabalhos, em tratamento, limitavam-se ao tema dos jogos, modelos de comunicação e comecei a admitir e a rever-me no jogo da fraude. Eu era uma fraude.

Quando saí, não tive dificuldade em me revelar, como A.A. Comecei a falar, abertamente, com a minha sogra e restante família sobre o meu abuso de álcool. Todos eles sabiam e conversavam sobre isso com o meu marido. Afinal eu era traída por ele. Afinal, eu é que não podia falar sobre isso com ninguém. Constatar estes factos foi aterrador.

Rapidamente, o meu marido, começou a dizer-me que eu não era alcoólica e que tinha sofrido uma lavagem ao cérebro. Três meses depois estávamos separados e se assim não fosse já teria recaído.
Esta é a minha história.

Obrigada, João Alexandre."

Comentário: Este texto foi enviado pela Maria José a fim de ser publicada no blogue. Todos os dados foram publicados com a devida autorização da autora. 

O poder da palavra aliada ao exemplo – “Se sou capaz tu também és”. É extraordinário o poder da partilha, quando um individuo decide assumir a inteira responsabilidade pelo seu problema (passado) e pelo rumo da sua vida (presente e futuro), com coragem, neste caso específico, refiro-me à recuperação do alcoolismo e a dependência de benzodiazepinas, medicamentos sujeitos a receita médica, quando a tendência generalizado é esconder e negar, consequência do estigma, da negação e da vergonha. É através da palavra que expressamos e reforçamos as necessidades uns com os outros - vínculos. Há palavras que mudam as pessoas – esperança, coragem, a gratidão, a honestidade e talento.
É importante salientar, que ao contrário daquilo que se pensa, ninguém escolhe ser alcoólico, apesar de ingerir álcool, seja um acto voluntário. O alcoolismo e a dependência de substâncias psicoactivas, do Sistema Nervoso Central, vulgo drogas licitas e/ou ilícitas são uma doença. A nossa cultura, promove e reforça o consumo e o abuso do álcool, todavia, ostraciza aqueles (indivíduos e famílias) que desenvolvem uma dependência.
Recuperar é que está a dar, Maria José. Bem-haja pela sua partilha.

  • Sabia que a comunidade médica definiu o alcoolismo como uma doença em 1958? Após 56 (1958-2014) anos o estigma, a negação e a vergonha ainda permanecem enraizados nas tradições e regras disfuncionais da sociedade.
  • Sabia que a comunidade médica definiu a “toxicodependência” como uma doença em 1987? Pessoalmente, não utilizo a definição “toxicodependência”, opto pelo conceito de doença - dependência e/ou adicção à drogas. Diagnosticar a doença da adicção não consiste em acusar, segundo padrões pseudo moralistas, relativamente a comportamentos considerados marginais e “fraqueza”. Não há discriminação. 

    
1. Alcoólicos Anónimos – Grupos de ajuda mutua que utilizam o conceito dos 12 Passos na sobriedade/recuperação através da abstinência. Estes grupos, são oriundos dos EUA (primeiro grupo fundado em 1935), existem em Portugal desde meados dos anos 70. Estes grupos, de homens e mulheres, São considerados uma referência internacional na recuperação (novos estilos de vida) do alcoolismo.



2. Benzodiazepinas - são um grupo de fármacos ansiolíticos, drogas lícitas sujeitas a receita médica, utilizados como sedativos, hipnóticos, relaxantes musculares. Causam dependência psicológica e física, dependente da dosagem e duração do tratamento. 

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