sexta-feira, março 07, 2014
O jogo problemático é um problema de saúde publica
Este artigo foi publicado no Jornal de Negócios (17 de
Fevereiro de 2014) e está disponível só para assinantes online , nesse sentido, disponibilizo-o
para si que é seguidor do blogue Recuperar é que está a dar.
Jornal de Negócios: Nos últimos
anos, o volume de jogos de fortuna e azar e apostas desportivas foram aumentando
quer em locais físicos, mas como através da Internet. Esse crescimento foi
acompanhado pelo registo de incremento de pessoas com adicção de jogo?
O incremento de pessoas com adicção ao jogo e o jogo
patológico, através da Internet tem sido exponencial. Por exemplo, no final dos
anos 90 a maioria dos indivíduos adictos ao jogo, em casinos, eram adultos na
casa dos 40 e dos 50 anos. Hoje em dia através do acesso online, chegam às consultas indivíduos com problemas associados ao
jogo com idades entre os 24 e os 30 anos. Todavia, isso não quer dizer que todos
sejam adictos ao jogo, isto é, alguns são indivíduos com problemas associados
ao jogo que varia entre moderado e grave. Na sua pergunta refere adicção, nesse
sentido, importa saber o que é a adicção. A adicção afecta a saúde do
indivíduo, os vínculos familiares, incluindo das crianças, o desempenho
profissional e a qualidade de vida. Ser adicto não é uma escolha pessoal. Ao
longo de vinte anos de experiência profissional, na área da adicção, nunca ouvi
nenhum individuo afirmar que escolheu ser adicto. Não é um acto voluntário, o
individuo perde o controlo, a compulsividade, o craving (desejo intenso e irracional pela actividade) e continuação
do comportamento apesar das consequências negativas. A Sociedade Americana da
Medicina da Adicção define a adicção como uma doença primária, crónica que
interfere e afecta o sistema/estrutura do cérebro responsável pelo prazer e
recompensa, pela motivação e memoria e os circuitos neuronais adjacentes. Sabemos
que uma alteração e disfunção destes circuitos neuronais conduzem ao
aparecimento de sintomas a nível biológico, psicológico, social e espiritual no
indivíduo, que se reflectem na busca e recompensa patológica do prazer. Por
outras palavras, a adicção funciona como uma “almofada” perante determinadas
situações e adversidades ao longo da vida do indivíduo. Este fenómeno repete-se
com a adicção às substâncias psicoactivas lícitas, incluindo o álcool, as
ilícitas, vulgo drogas, com o jogo, o sexo, as compras, o furto. A fim de ficar
esclarecido existe um critério que identifica o jogo problemático (moderado a
severo) e um critério para a adicção (doença primária e crónica). A adicção não
é um vírus.
Segundo estudos (American
Medical Association, EUA, 2000) existem factores genéticos em comum entre
os indivíduos jogadores patológicos do sexo masculino e o álcool. Todavia, também
gostaria de referir que nas últimas duas décadas, com os avanços tecnológicos e
a investigação, principalmente nos EUA e Canadá, ainda estamos a aprender sobre
o que é a adicção; as causas, a identificar aqueles indivíduos mais vulneráveis
e os tratamentos disponíveis mais adequados.
Jornal de Negócios: É possível
traçar o perfil do jogador compulsivo?
Segundo uma investigação no Canadá, os indivíduos com
problemas associados ao jogo compulsivo (patológico) apresentam quatro vezes
mais probabilidades de serem diagnosticados com doença mental, relacionado com
perturbação do humor e ansiedade, do que os indivíduos não jogadores. A
actividade associada ao jogo começam na adolescência, com mais prevalência no
sexo masculino do que no sexo feminino.
Na minha experiência profissional o perfil do individuo
jogador compulsivo oscila entre os 24 e os 56 anos. Sexo masculino, classe
media/alta, licenciados com carreiras profissionais estáveis, trabalham em
excesso, têm dívidas, gostam de quebrar regras e correr riscos, são impulsivos
e egocêntricos. Acreditam que o dinheiro é a causa e/ou a solução para os seus
problemas. Alguns deles afirmam, em situações de desespero, ideações e
tentativas de suicídio. Alguns destes indivíduos são oriundos de famílias
desestruturadas com problemas de álcool, jogo e violência doméstica.
Jornal de Negócios: As
autoridades estão despertas para fiscalizar a multiplicidade de jogos
disponíveis?
Na minha opinião, as autoridades estão conscientes deste
fenómeno, mas ainda não existe vontade politica para mudar esta realidade
associada aos problemas do jogo. Posso dar um exemplo, na última semana, todos
os meios de comunicação social e redes sociais, faziam referência à morte do
actor galardoado de Hollywood, Philipe Seymour Hoffman por overdose de drogas ilícitas. Se pensarmos em indivíduos com
problemas de jogo, não me recordo de nenhum caso, de figura publica, quer seja
estrangeiro ou português que tenha sido noticia. Todavia, quando surgem
notícias relacionadas com indivíduos e o jogo patológico, o destaque é
direccionado para actividades ilegais, dívidas, burlas, tribunais, são,
erradamente, considerados casos de polícia. As pessoas são presas e estigmatizadas.
Não recebem o devido tratamento.
Persiste o estigma, a vergonha e a negação. Actualmente, a
indústria do Jogo é um negócio de muitos milhares de euros. Em Portugal, o jogo
é um problema de saúde pública que ainda permanece obscuro e por avaliar os
seus efeitos e consequências. É preciso vontade política.
Entre 01 de janeiro e 30 de novembro de 2013 foram gastos em
apostas 854,9 milhões de euros no Euromilhões, em dez anos os portugueses
gastaram nove mil milhões. Nos primeiros três meses de 2013 os portugueses
gastaram 101 milhões de euros em raspadinhas. Segundo um estudo conduzido pelo
Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa, a raspadinha é
o terceiro jogo pelo qual a população, entre os 15 e os 74 anos, revelou ter
maior dependência. Falta saber os valores e o impacto das lotarias, nos
casinos, bingos, e jogos ilegais, nos cafés e bares das aldeias de norte a sul
do país.
Jornal de Negócios: Quais os
perigos do jogo online? A adicção apresenta-se de forma diferente?
Segundo a minha experiência profissional, os perigos do jogo
online são insidiosos e complexo
visto haver da parte do jogador patológico, acesso ilimitado à Internet,
independentemente da hora, do local, do dispositivo (computador, telemóvel, tablet). Conheço casos de indivíduos,
quando chegam ao local de trabalho, ligam o computador, e imediatamente começam
a jogar ou a consultar os sites de apostas
ou poker ou mercado de valores, e
assim permanecem, em segredo, sem conhecimento dos seus colegas e/ou entidade
patronal, até ao final do dia. Obviamente, este tipo de actividade compromete
seriamente o desempenho do trabalhador. Também utilizam os smartphones e os tablets
para continuar a jogar/apostar em casa no final do dia de trabalho. Afirmam «É
uma forma prazerosa de descontrair e relaxar, depois de um dia stress no trabalho». Negligenciam a
relação com a sua parceira, com os filhos e/ou outro tipo de actividades
sociais. Na maioria dos casos, a família desconhece ou permanece ignorante
quanto às consequências reais do jogo. Alguns indivíduos permanecem «ligados»
às actividades associadas ao jogo durante 12 a 14 horas diárias. Gradualmente vai
aumentando a actividade associada ao jogo/apostas por longos períodos com
incremento da frequência, da intensidade e da duração. Quanto maior a exposição
à actividade associada ao jogo/apostas, maior o risco de desenvolver a adicção.
Jornal de Negócios: Como é
possível “investigar” este tipo de adicção?
É preciso um plano nacional que vise erradicar e/ou atenuar
o estigma, a negação e a vergonha associados aos comportamentos adictivos.
Existem mitos e preconceitos que visam discriminar o individuo adicto e a sua
família. Segundo relatos das famílias, que pedem ajuda nas consultas, afirmam
“Quando soubemos do problema do jogo do meu filho, decidimos ocultar de toda a
gente, incluindo a família mais próxima e tentamos resolver o problema em casa.
Mais tarde, reconhecemos que foi o pior que podíamos ter feito, porque ao invés
de melhorar, ainda agravou mais, com a agravante de ter dividido a relação
entre o eu e o meu marido. No fundo, sentimos imensa vergonha, porque nunca
imaginamos que o meu filho pudesse ter um problema desta natureza. Levamos
algum tempo até aceitar que aquilo que fazíamos para ajudar, só piorava. Hoje
admito, como mãe, que sinto imensa vergonha do problema do meu filho. Só sabe o
mal que isto é, quem passa por elas.”
Em Portugal, a investigação ainda está numa fase
embrionária, apesar de haver alguns profissionais dedicados ao estudo do jogo
patológico, onde destaco o trabalho do Dr. Pedro Hubert. Para além da
investigação, são necessários profissionais que assumam o compromisso, isto é,
que dediquem a uma parte significativa das suas carreiras à formação continua,
à investigação, à partilha de conhecimentos, experiencias e criarem-se equipas
pluridisciplinares que se dediquem exclusivamente ao tratamento e recuperação
dos comportamentos adictivos, e do jogo em particular. É necessário mobilizar a
comunidade, em particular, e a sociedade, em geral para este tipo de fenómenos
emergentes e transversais. Qualquer pessoa está exposta e vulnerável. Aquelas
pessoas que consideram que a adicção só acontece aos outros, são provavelmente
aquelas que apresentam mais factores de risco.
Quais são os custos do jogo patológico que representam para
os cofres do estado? Em termos de comparação os custos do álcool representam
200 milhões de euros. Os custos do tabaco representam 500 milhões de euros.
Se houver, da parte dos decisores políticos, dos meios de
comunicação social, legislação, um plano nacional de prevenção e tratamento como
está acontecer com o tabaco, creio estarem criadas as condições para haver mais
pessoas informadas, profissionais e instituições dedicadas ao tratamento. Como
resultado, destes esforços, nos últimos anos, o número de pessoas que procurou
ajuda para interromper a adicção ao tabaco. aumentou significativamente.
Jornal de Negócios: Quais os
perigos da publicidade relacionada com o jogo?
O mesmo fenómeno repete-se com o álcool, com o tabaco e também
com o jogo. Apesar de haver mudanças nos paradigmas sobre o tabaco, em relação
ao resto, as leis existentes ainda são permissíveis e não existem instituições
credíveis independentes que monitorizem o marketing
agressivo e a publicidade associada aos comportamentos adictivos. Isto é, o
problema não são as substâncias psicoactivas lícitas e/ou o jogo, o real problema
são as pessoas. Algumas pessoas conseguem consumir drogas, beber bebidas
alcoólicas e/ou jogar socialmente sem que isso represente um problema para as
suas vidas, todavia, enquanto outras, felizmente em menor numero, apresentam um
risco maior. Tal como referi, no inicio, infelizmente existem muitos casos de
pessoas que faleceram como consequência da adicção às substâncias psicoactivas,
nos últimos anos, só para enumerar alguns, Michael Jackson, Amy Whinehouse,
James Gandolfini, Witney Houston e
Philipe Seymour Hoffman. Segundo as Nações Unidas estimam-se que 160 mil
milhões de dólares oriundos do tráfico de drogas, anualmente, sejam lavados na
banca internacional. O fenómeno é idêntico com o jogo legal e ilegal. Os lucros
astronómicos, os interesses financeiros e económicos estão acima dos direitos
das pessoas. Apesar de sabermos que entre indivíduos com problemas de jogo o número
de suicídio é elevado e os custos para o estado elevadíssimos, todavia, esta
realidade ainda é negligenciada. Parte dos lucros da indústria do jogo deviam
ser revertidos para a investigação e o apoio no tratamento do jogo.
Jornal de Negócios: Quais são as
principais tendências de futuro?
Após duas décadas a trabalhar na área dos comportamentos
adictivos as tendências destes fenómenos relacionados com a natureza humana,
são para se manterem. Estamos vulneráveis perante a dor e conseguimos
convencer-nos que conseguimos ludibria-la recorrendo a estratégias e mecanismos
cuja finalidade é o prazer imediato. No outro lado deste fenómeno, felizmente,
também existem muitos casos de pessoas que recorreram à ajuda profissional ou
através dos grupos de ajuda mútua dos 12 Passos (Jogadores Anónimos) que
conseguiram ultrapassar a adversidade. Da mesma forma, que se estudam as causas
e os sintomas do jogo patológico, também é necessário estudar aquelas pessoas
resilientes que permanecem em recuperação durante períodos duradouros. Essas
pessoas são um recurso valiosíssimo para a comunidade. É preciso sensibilizar o
público em geral, através de informação e haver uma participação cívica mais
activa, em relação a estes temas. Participei num programa, numa escola sobre a
prevenção das dependências, e foram enviados para a associação dos pais,
centenas de convites, apareceram seis pais. Perante a negação e a passividade é
preciso uma revolução nesta matéria. Os nossos filhos merecem que os adultos
zelem pelos seus direitos a uma vida plena.
Para terminar, gostaria de publicar um email que recebi de uma pessoa adicta ao jogo, do Brasil, também
podia ser portuguesa, enquanto escrevia este artigo, a pedir-me ajuda.
«Chamo-me Adélia. Li o seu blogue e a minha pergunta é a
seguinte. Estava viciada em jogo de bingo (vídeo) naquele nível de pensar em
suicídio, de jogar o dia inteiro e fazer ate xixi na máquina para não levantar
e ir ao banheiro. Às custas de muito sofrimento e terapia estou à 1 ano e 2
meses sem jogar. Acho que é bom eu te contar como forma de estudares o meu caso.
Como você sabe, a dependência das drogas é diferente do jogo, o corpo não tem
contacto com drogas, mas tive abstinência terrível, tudo tudo mesmo, e só não
tive convulsões. Felizmente, estou um pouco ou bem melhor. Queria saber porque
é que ainda tenho depressão? Você acha que preciso de um anti depressivo ou vai
melhorando sem remédio? Obrigada, fica com Deus, Adélia (nome fictício)»
Este tipo de problemas não acontece só aos outros. O silêncio
não resolve, pelo contrário, a tendência é para se agravar. Lá porque não se
vê, não quer dizer que não existe.
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