Nota: Os verdadeiros nomes dos intervenientes, desta historia, foram modificados de forma a manter o seu anonimato.
domingo, julho 24, 2011
"Tal pai, tal filho", mas com rumos diferentes
Um garoto, a que vamos chamar Júlio, de 15 anos, quando
conversava evitava o olhar e falava muito baixo, todavia, era muito doce e
muito forte. Morava num bairro social, num T1, no mesmo prédio mas em dois andares diferentes. No primeiro
andar morava a avó que padecia de cancro, em fase terminal, no rés-do-chão
morava o pai alcoólico com um cão. Todos os dias, o rapaz levantava-se muito
cedo, tratava da casa, preparava o almoço, depois corria para a escola onde era
um óptimo aluno, mas muito solitário. Ao final da tarde e de regresso a casa,
fazia compras, não esquecia de levar o vinho, lavava o T1 onde o pai e o cão
tinham feito bastantes porcarias, vigiava os medicamentos, dava comer à pequena
família, depois à noite, quando a tranquilidade regressava, oferecia a si mesmo
um instante de felicidade, estudava.
Um dia foi convidado para participar num projecto entre
turmas na escola. Ele, dois colegas e o professor estiveram a falar sobre o
assunto. Após a reunião, voltou para casa, para as suas duas divisões caóticas,
deslumbrado e aturdido de felicidade. Era a primeira vez na vida que lhe
falavam amigavelmente, que o convidavam para tratar de um assunto
insignificante e abstracto, tão diferente das provações incessantes que enchiam
a sua vida quotidiana. Esta conversa (reunião) insignificante, para um jovem de
um ambiente familiar normal, adquirira para o Júlio um deslumbramento muito
especial e distinto. Afinal, era possível conviver e fazer parte das coisas
normais e abstractas. Passados uns anos, antes do exame final do 12º ano, o Júlio,
exclamou “Se por desgraça, passar no exame, não poderei abandonar o meu pai, a
minha avó e o meu cão.”
Recordo outro indivíduo a que vamos chamar de Mário, 40
anos, alcoólico e dependente de drogas desde longa data, pai solteiro de duas
filhas jovens, que não conhece, vive, num bairro social, T1, com a sua mãe de 80 anos, mais dois irmãos,
um de 35 e o outro de 38 também dependentes de drogas e álcool, não
sabe ler e escrever e apresenta sérios problemas de saúde consequência da
dependência (no fígado). O seu pai morreu, com uma cirrose no fígado, vítima do
alcoolismo. O Mário, não completou a primeira classe, como não tinha “jeito”
para estudar, foi trabalhar na construção civil, com o seu pai. È um individuo
de tracto dócil, simpático e sempre esteve disponível para ajudar os outros.
Hoje o Júlio, com 40 anos, é professor universitário e o Mário, 40 anos, está dependente de álcool e outras drogas. O rumo de vida foi diferente para
estas duas crianças, ambas oriundas de famílias afectadas pela Adicção activa (Alcoolismo).
Talvez por ironia do destino cruel, tenha determinado um rumo diferente, no
caso do Júlio. Depois de passar no 12º ano, um dia o cão fugiu para a rua, o
pai alcoolizado perseguiu-o, cambaleante, e foi atropelado por um automóvel, uns
dias depois a avó faleceu no hospital de cancro. Liberto das suas obrigações
familiares, disfuncionais, conseguiu reunir os recursos (externos) e competências
(internas) que lhe permitiram moldar o temperamento doce, mas resistente, perante
as agressões da sua existência, mas determinantes no trajecto da sua vida.
O Mário dependente crónico de substâncias
psicoactivas, ainda permanece “agarrado” ao sistema caótico e disfuncional familiar,
no mesmo T1, apesar do seu trato dócil, simpático e disponível para ajudar os
outros. Começa a beber de manhã, para “sossegar” os tremores das mãos e de
tarde dorme para apaziguar os seus “fantasmas”, perdeu a esperança quanto a um
projecto de vida, incapacitado psicologicamente, pelos efeitos negativos do
álcool e drogas, e estigmatizado pela sociedade, como um “caso perdido” e cuja
profecia popular determina “Coitado, vai-lhe acontecer o mesmo que ao pai.”
A criança e a tradição da “Sopa de Cavalo Cansado”
Esta pequena história revela um fenómeno, negligenciado e
ignorado, em Portugal, que considero preocupante. Refiro-me aos filhos/as de
pais dependentes de substancias psicoactivas licitas, incluindo o álcool e/ou
as ilícitas. Se o alcoolismo é um problema de saúde pública quantas crianças
são vítimas deste flagelo? Estas crianças, oriundas de famílias desestruturadas
e disfuncionais, são negligenciadas visto o tratamento contemplar e estar
direccionado, somente aos pais dependentes. Muitas destas crianças são vítimas
de abuso físico, emocional e sexual.
Em vários estudos, nos EUA, sobre o fenómeno da família
afectada pela Adicção das Substancias psicoactivas, a ciência confirma, ao contrário
do que era conhecido anteriormente, e apesar da vulnerabilidade genética, que algumas
crianças oriundas de famílias desestruturas e disfuncionais afectadas pela
adicção activa, possuem recursos internos, mas para isso precisam de ser
apoiadas e orientadas, de forma a conseguirem “sobreviver” à adversidade. No
caso do Júlio, ao contrário do Mário, a ironia do destino encarregou-se de
alterar o percurso disfuncional.
Em 2011, ainda subsiste a crença popular “Tal pai, tal
filho” ou “Ele/a é assim porque sai à família”. Por outro lado, não há muito
tempo, creio até aos anos 70, algumas crianças, eram alimentadas desde muito
cedo, pelas “sopas de cavalo cansado” cujo ingrediente principal era o álcool
(Droga). Será que esta “tradição”, associada à cultura que bebe, ainda teima em
fazer vítimas, de abuso e negligencia, entre as crianças mais vulneráveis e sem
recursos, nos dias de hoje? Existem estudos, efectuados por instituições e/ou profissionais
do conhecimento publico, sobre este tipo de abuso (flagelo) em Portugal? Quantas
crianças e/ou famílias são afectadas pelo alcoolismo? Sabe-se que o abuso do álcool,
alcoolismo e a codependência (ver link: codependência) estão associados à
violência doméstica. O fenómeno do abuso de drogas ilícitas, por ex. cannabis,
após aproximadamente de 30 anos de existência e de luta contra as droga, faz
parte integrante do convívio social, entre um grupo significativo de
portugueses, adolescentes e adultos, onde se definem, no horizonte,
perspectivas de legalização. O abuso do álcool (droga licita) é legal, a partir
dos 16 anos, é também um fenómeno transversal, na nossa sociedade, onde é tolerado
e negligenciado pelos políticos, pela ordem dos médicos e ordem dos advogados,
por ex. a publicidade de bebidas alcoólicas associadas ao desporto, as técnicas
agressivas de marketing cujo target
são os jovens, novos consumidores, de forma a se fidelizarem à marca, para o
resto da vida. Na minha opinião, como profissional, o álcool e o desporto não
se “misturam”, por mais que a publicidade, as leis e os políticos e alguns
profissionais de saúde, assim consintam e ou determinem. O Mundo dos Adultos
não é seguro para algumas crianças vulneráveis.
Para terminar, são urgentes medidas de prevenção e apoio (governo,
associações, instituições, profissionais e equipas multidisciplinares) de forma
a avaliar e identificar o fenómeno, junto das famílias dos dependentes, assim
como a sua participação activa no plano de tratamento. Recuperar É Que Está A
Dar.
Siga o links:
Efeitos da dependência das substâncias psicoactivas (Drogas).
Codependência
http://recuperarequeestaadar.blogspot.com/search/label/codependencia
Nota: Os verdadeiros nomes dos intervenientes, desta historia, foram modificados de forma a manter o seu anonimato.
Nota: Os verdadeiros nomes dos intervenientes, desta historia, foram modificados de forma a manter o seu anonimato.
Publicada por
JOÃO ALEXANDRE RODRIGUES conselheiro certificado abuso de drogas e alcool
à(s)
domingo, julho 24, 2011
Etiquetas:
abstinencia,
alcoolismo,
codependencia,
criança interior,
crianças,
direitos individuais,
família,
limites,
necessidades humanas,
regra do silêncio,
resiliência,
sociedade,
violência
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